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Botânica

Taxonomistas: há séculos a desvendar a biodiversidade

Os filósofos da Antiguidade foram dos primeiros a dedicar-se ao conhecimento das plantas. Muitos séculos depois, os taxonomistas assumiram o desafio e hoje o seu trabalho permite identificar, classificar e nomear os diferentes seres vivos, um conhecimento essencial para preservar a biodiversidade, porque só podemos proteger aquilo que conhecemos.

Identificar, classificar e nomear os diferentes objetos e organismos que nos rodeiam é algo intrínseco aos seres humanos: à necessidade de compreender o organizar o mundo. Muito antes de existirem taxonomistas, biólogos ou zoólogos, identificar e distinguir entre tipos, formas, propriedades e comportamentos de diferentes animais, plantas e fungos era antes de mais uma necessidade. Para os nossos antepassados recoletores, este conhecimento – ou a falta dele – podia significar viver ou morrer, tal era a importância de distinguir uma planta comestível de outra venenosa.

Embora identificar, nomear e classificar seja algo inato, fazê-lo com critérios objetivos e aceites globalmente é um desafio tão complexo como a realidade que se pretende conhecer, nomear e classificar. Para se ter uma noção desta complexidade basta pensar na quantidade e diversidade de plantas que existem no mundo, já para não falar nos fungos e bactérias, muitos dos quais nem sequer conseguimos ver a “olho nu”.

Contudo, esta é uma missão especialmente crítica para a preservação da biodiversidade, porque só podemos proteger aquilo que conhecemos.

Embora não estejam sozinhos nesta missão, os taxonomistas especializaram-se nela e, como indica Carlos Aguiar, no seu livro “Sistemática das plantas vasculares”, o seu trabalho consiste:

  • Na criação de sistemas de classificação que permitam agrupar e categorizar os organismos segundo uma estrutura lógica, geralmente hierárquica, indicativa de ligações (e distinções) entre grupos de seres vivos;
  • Na nomeação destes organismos segundo normas que permitam designá-los de forma universal e inequívoca;
  • Na identificação e denominação dos organismos, tendo como referência as categorias previstas no sistema de classificação.
Os taxonomistas e o conhecimento das espécies

O número de plantas (vasculares e não vasculares) já nomeadas pela ciência rondava as 450 mil espécies, de acordo com o “State of the World’s Plants and Fungi” (2023). Este relatório estimava que 15% da flora mundial estivesse ainda por identificar cientificamente e que 77% das espécies já descritas pudessem estar ameaçadas de extinção. Muitas ter-se-ão extinguido antes de serem nomeadas e descritas.

Desde finais do século XX, que o trabalho dos taxonomistas passou a ser apoiado por novos conhecimentos proporcionados pela evolução da ciência e tecnologia, destacando-se o contributo da genética molecular.

A possibilidade de comparar diretamente o ADN de diferentes organismos, identificar semelhanças e diferenças genéticas e estimar o tempo em que surgiram separações entre organismos com um passado comum é muito mais fiável do que comparar simplesmente formas, tamanhos ou cores – os chamados caracteres morfológicos – que podem ser semelhantes apenas por um acaso.

Genética molecular permitiu aos taxonomias identificar as espécies pelo seu ADN

Este acaso pode suceder, por exemplo, devido a uma evolução convergente, como aconteceu com as asas, que são comuns a aves e morcegos, embora estes últimos sejam mamíferos; ou com as estruturas pontiagudas que protegem várias espécies de plantas, a que habitualmente chamamos espinhos, mas que nem sempre o são – por exemplo, nos caules das roseiras são acúleos (projeções superficiais, nascidas na epiderme da planta) e não espinhos (estruturas originadas nas folhas ou caules) como têm as laranjeiras.

A filogenética é o ramo que se dedica a este estudo da evolução das espécies e grupos de espécies e os taxonomistas podem atualmente recorrer aos métodos de classificação rigorosos por ela propostos, como a cladística, para reconstituir a separação dos ramos da árvore da vida e compreender quando ocorreram, com base em caracteres derivados herdados pelos descendentes (novidades evolutivas em relação ao grupo ancestral) para identificar o surgimento de novas linhagens.

A perspetiva da filogenética não se limita a observar as características genéticas partilhadas entre espécies, mas a reconstituir a história da diferenciação evolutiva. Esta reconstrução do caminho evolutivo baseia-se na identificação de caracteres derivados (um novo carater em relação ao grupo ancestral) para identificar o surgimento de novos ramos ou grupos evolutivos. Mas nem sempre foi assim.

Os modernos taxonomias já não se limitam a observar as características das espécies

A identificação das plantas e os antecessores dos taxonomistas

Há muitos séculos que os antepassados dos modernos taxonomistas começaram a identificar os seres vivos. Os pioneiros fizeram-no por razões práticas e utilitaristas, mas muitos outros se seguiram, propondo diferentes sistemas de classificação biológica ao longo do tempo.

Aquela que é considerada a primeira classificação de “todos os organismos vivos” foi feita por Aristóteles (384-322 a.C) e alguns dos grupos que estabeleceu, como os animais vertebrados e invertebrados, continuam a ser usados.

Pouco depois, Teofrasto (372 a.C. – 287 a.C.) fez a classificação “de todas as plantas conhecidas” e são dele os primeiros registos sobre a cultura do castanheiro e as plantações de mirra e incenso, incluídos na obra “Historia plantarum.

Obras de Teosfato, Discorides e Plínio

Historia plantarum, de Teofrasto; De materia medica, de Dioscorides; Naturalis Historia, de Plínio – o Velho

Cerca de três séculos passados, o médico, farmacêutico e botânico Pedânio Dioscórides foi considerado o fundador da farmacognosia – que estuda os ativos de origem biológica com interesse medicinal – graças à sua obra “De materia medica, já de 64 d.C.

Este seu livro reúne a descrição de cerca de 600 plantas medicinais, 35 fármacos de origem animal e 90 de origem mineral, alguns dos quais são ainda considerados válidos pela sua atividade farmacológica.

Pela mesma época, o historiador, filósofo e naturalista romano Plínio – o Velho, escreveu “Naturalis historia, uma obra enciclopédica publicada, entre 77 d.C. e 79 d.C., que continha vários volumes temáticos. Os volumes 12 a 19 foram dedicados à botânica e neles descreveu várias plantas, dando-lhe nomes em latim. Na altura, esta era a língua universal no mundo ocidental e Plínio ficou, assim, conhecido como o “Pai da Botânica em Latim”.

Muitos outros se seguiram, com contributos mais (ou menos) conhecidos e válidos, sempre baseados na observação direta e na experiência de utilização.

Saltando no tempo, já no século XVI o desenvolvimento de lentes óticas permitiu observar detalhes importantes para diferenciar as espécies e os pequenos organismos. Muitos dos trabalhos então desenvolvidos vieram substituir as obras dos pioneiros.

Neste período, Andrea Cesalpino (1524-1603) foi o primeiro naturalista que procurou sistematizar e classificar os seres vivos e os minerais, o que fez dele um dos primeiros taxonomistas da história. Este botânico de renome, que foi também um dos primeiros a fazer um herbário, desenvolveu a obra “De plantis”, em que descreve cerca de 1500 plantas, dividindo-as em 15 classes baseadas no “hábito de crescimento” e na forma das flores e frutos, tal como tinha feito Teofrasto.

Algumas das classes identificadas por Andrea Cesalpino ainda são hoje usadas, como acontece com as famílias:

  • Brassicaceae (brassicáceas ou crucíferas), que incluem hortaliças como as couves e os nabos;
  • Asteraceae, também conhecidas como compostas, incluem plantas como a alface, o girassol e as margaridas.
Andrea Cesalpino, um antecessor dos taxonomistas que descreveu 1500 plantas

De plantis, de Andrea Cesalpino

Em sua memória, o frade franciscano Carlos Plumier (1646−1704) deu o nome de Caesalpinia a um género de planta que também ainda se mantém. Hoje, é a subfamília Caealpinioideae (da família Fabaceae), que contém várias plantas bastante valorizadas, incluindo a alfarroba (Ceratonia siliqua), o pau-brasil (Paubrasilia echinata) ou o espinheiro-da-Virgínia (Gleditsia triacanthos).

Outro contributo importante foi trazido por Gaspard Bauhin (1560–1624), anatomista e botânico suíço que, em vez de utilizar longas descrições para identificar cada espécie, como era habitual na botânica medieval, passou a referir cada planta por nomes curtos, compostos por duas a quatro palavras. A sua obra Theatri botanici (1623) contém seis mil plantas, que classificou segundo características partilhadas e nomeou com a nomenclatura inovadora que propôs, baseada na sequência de um nome genérico e outros específicos.

Seguiram-se outros importantes de botânicos e naturalistas, destacando-se entre eles Carl Linnaeus (1707–1778) e as suas obras: “Systema naturae” (1735), “Genera plantarum” (1735-1737) e “Species plantarum” (1753).

Conhecendo o trabalho de Garpard Bauhim, Carl Linnaeus estabeleceu, logo na sua primeira obra, que cada espécie deveria ser identificada por um nome (em latim) composto por duas palavras, a primeira relativa ao género e a segunda característica da espécie. Foi ele que criou as bases da nomenclatura binomial – ainda hoje em vigor –, permitindo designar cada espécie inequivocamente e em qualquer parte do mundo.

Carl Lineu (1707-1778) um nome a reter entre os antecessores dos taxonomistas

Carl Lineu

Conheça as normas da classificação e do sistema binomial proposto por Lineu e que vigoram no século XX. São elas que regem os taxonomistas, na sua missão de nomear os organismos vivos, e que ditam a forma como se referem e escrevem os seus nomes, para serem universalmente reconhecidos.

Com base nos contributos de outros naturalistas, Linnaeus (ou Lineu, como dizemos em Portugal) propôs também um sistema de classificação hierárquico para animais e plantas (na altura também para os minerais), estruturando-o em “Reino, Classe, Ordem, Género e Espécie” – sendo espécie o nível base de classificação. No caso das plantas, os seus critérios de classificação basearam-se num conjunto de caracteres sexuais e reprodutivos, que podiam ser facilmente observados.

Tal como em sistemas anteriores, Lineu baseou-se num pequeno conjunto de características definidas arbitrariamente por si mesmo, que serviram para estabelecer relações entre plantas, mas na realidade muitas delas não tinham qualquer relação de afinidade e apresentavam até grandes diferenças morfológicas entre si (a não ser os caracteres sexuais que observou).

Este tipo de sistemas baseados em caracteres arbitrários definidos por cada autor e relacionados com comportamentos ou “hábitos”, são normalmente designados como sistemas de classificação artificiais.

Nos séculos XVIII e XIX houve igualmente várias outras propostas de sistemas de classificação que procuravam afinidades naturais para estruturar grupos de seres vivos com base nas suas semelhanças. Conhecidos por sistemas naturais, mantinham uma classificação estruturada em caracteres que variavam de autor para autor.

O botânico suíço Augustin Pyrame de Candolle (1778-1841), que usou pela primeira vez o termo taxonomia, deixou contributos relevantes para esta sistemática natural, procurando identificar na anatomia dos seres vivos características que pudessem revelar a sua origem comum. Embora influenciado pela teoria da seleção natural de Darwin, o sistema que propôs tentava encontrar semelhanças partindo do princípio de que a anatomia das espécies se mantinha constante, sem mutações, ao longo do tempo.

Na segunda metade do século XIX, vários autores procuraram criar sistemas de classificação evolutivos, integrando caracteres que supunham ser úteis para classificar as espécies segundo relações de parentesco. No entanto, esta suposição foi feita sem que existisse uma base científica para determinar quais os caracteres que poderiam determinar um passado evolutivo comum (os caracteres moleculares não eram ainda conhecidos).

Ainda assim, vários sistemas evolutivos continuam a ser úteis e, apesar das falhas que lhes são reconhecidas, anteciparam boa parte da informação que vai sendo revista pelos modernos taxonomistas, apoiados pela sistemática filogenética e pelos métodos de análise que a apoiam (análise cladística) e ajudam a compreender como evoluíram as plantas.

Taxonomistas identificam centenas de espécies com apoio de ADN

Os modernos taxonomistas não descartam as várias dimensões que foram sendo usadas ao longo da história para identificar e nomear as plantas, como os caracteres morfológicos e comportamentais, mas procuram em disciplinas como a embriologia (estudo do embrião), a fitoquímica e a taxonomia molecular maior robustez na forma de as conhecer e classificar.

Apoiam-se tanto na informação recolhida em campo (até porque a identificação pelos taxonomistas requer a existência de um exemplar físico – vivo ou fóssil) como nos dados laboratoriais, assim como em algoritmos que permitem analisar grande volume de dados e determinar padrões.

149 espécies de plantas novas para a ciência foram identificadas só em 2024 pela equipa de cientistas dos Royal Botanic Gardens Kew e seus parceiros. Algumas foram descobertas absolutas e outras, à luz de nova informação genética, deram lugar a novas famílias e géneros ou fundaram novas espécies.

A identificação dos taxonomistas requer a existência de um exemplar, vivo ou fóssil
Taxonomistas identificam novas espécies e até novos géneros e famílias botânicas

O género Afrothismia individualizou-se da família Thismiaceae em 2024, após informação proveniente da sequenciação de ADN. Formou a sua própria família, endémica da África tropical, cujo número de novas espécies já descritas pela ciência tem vindo a aumentar. Estas raras e peculiares plantas perderam a capacidade de fazer a fotossíntese e dependem da sua relação com os fungos para obter alimento.

Nalguns casos, uma nova identidade e nomeação baseada nos resultados de estudos moleculares tem sido atribuída a espécies anteriormente classificadas. Nesta área também em Portugal têm sido feitas várias descobertas, como a de um novo amieiro e de quatro novos carvalhos:

– A identificação do amieiro que temos em Portugal como uma espécie distinta deve-se à sua genética diferente da que tem o Alnus glutinosa existente na maioria da Europa temperada. A nova espécie foi nomeada como Alnus lusitanica e batizada com o nome comum de ameiro-ibérico, uma vez que a sua área de distribuição natural está limitada apenas a Portugal, partes de Espanha e norte de Marrocos.

– A revisão taxonómica das espécies de carvalhos nativos levou ao desaparecimento da espécie Quercus robur (carvalho-alvarinho ou roble) e deu origem às novas espécies Quercus orocantabrica e Quercus estremadurensis (carvalho-galego e carvalho-da-Estremadura, respetivamente) e ao surgimento de duas espécies semelhantes ao carrasco, o Quercus pseudococcifera (falso-carrasco) e Quercus airensis (carrasco-da-serra-de-Aire).